Os antigos armazéns eram o coração das comunidades. Eles representavam pontos de encontro e nostalgia para comunidades que relembram os saudosos dias de balcões de madeira, balanças de ferro e o cheiro de fumo e cachaça. Em um mundo em constante evolução, as antigas bodegas permanecem como tesouros de memórias para aqueles que testemunharam seus dias de glória.
Antes dos anos 2000, esses estabelecimentos eram muito mais do que meros mercados, eram verdadeiros pontos de encontro e interação comunitária. Os balcões de madeira onde os proprietários atendiam os clientes, as prateleiras repletas de produtos variados, a caixa registradora com o barulho peculiar, o baleiro de vidro que rodava assobiando sobre o balcão e tantos outros ítens da época eram elementos que compunham a atmosfera única desses lugares. Era um mundo onde as pessoas podiam compartilhar histórias, jogar partidas de baralho e apreciar a simplicidade dos momentos.
Armazém Nandi: Um olhar nostálgico ao passado
Osório Nandi, ao lado de sua esposa Francisca Correa Nandi, é um guardião das memórias dos antigos armazéns. Ambos com 82 anos, eles carregam consigo uma rica história que remonta aos anos 60, quando o Armazém Nandi na comunidade de Sertão dos Corrêas em Tubarão começou a fazer parte da vida das pessoas. Na parede, um quadro ostenta o registro do estabelecimento do ano 1971, no entanto, o armazém já existia há mais de uma década quando foi registrado. De início o senhor Osório até ficou um pouco encabulado em dar entrevista, “a cabeça já não é mais a mesma”, afirmou brincando.
Mas aos poucos as histórias foram surgindo, também ao lado de Francisca. Eles contam que vendiam muito antigamente. Nas noites em que trabalhava sozinho, Nandi comenta que era difícil de se dar conta. "Antes era melhor. Hoje já estamos mais velhos. Já está no tempo de fechar as portas", lamenta. Eles têm duas filhas, mas cada uma seguiu a sua vida e não pretendem seguir trabalhando com o armazém.
Precursores da calça jeans em Tubarão
Eles relembram a época em que o armazém vendia desde corda até panelas, e até mesmo calças jeans recém-chegadas à cidade nos anos 70. Naquele tempo era comum que as pessoas comprassem tecido e mandassem fazer as próprias roupas, tanto é que Francisca, além de ajudar no armazém era costureira. Eles relatam que foram um dos primeiros estabelecimentos a venderem a calça jeans, uma grande novidade na época. Osório também se desdobrava carneando porcos em paralelo ao atendimento no mercadinho.
Bêbados no carrinho de mão: o passado de alegria nos armazéns:
É no tom saudosista que Osório fala sobre os clientes, os bêbados que frequentavam o local e como o tempo mudou o cenário. "O beber de antigamente era engraçado, os bêbados eram mais divertidos. Naquele tempo não tinha agressão. Era até normal carregar os bêbados com o carrinho de mão até em casa. Tudo muito divertido", relembra Osório com um sorriso. Atualmente as bebidas seguem sobre o balcão: desde o famoso bugio, até o conhaque e cachaça pura de alambique. Ele compartilha histórias de brincadeiras com clientes, de apelidos carinhosos e da ausência de conflitos. Esses relatos, cheios de humor e nostalgia, nos transportam para um tempo onde até mesmo os momentos de descontração eram marcados pela simplicidade.
A Tradição Familiar dos Armazéns:
Alice Castelan Tavares, nascida em 1967, é uma testemunha viva das tradições dos antigos armazéns. Atualmente ela mora em Tubarão e trabalha como empregada doméstica, mas ao longo de sua vida, ela trabalhou em dois desses estabelecimentos. O primeiro foi ao lado de seu avô na comunidade do Tenente, em Jacinto Machado. O segundo foi na comunidade de Vila Nova, em Santa Rosa do Sul, junto de seus pais. Ela relembra a rotina de servir lanches, cortar mortadelas e criar um ambiente de convívio comunitário que transcendia a simples compra e venda.
Homens do Terço e da Bodega: O Lado Social dos Armazéns
Nos relatos de Alice, vemos não apenas o comércio, mas também o lado social dos antigos armazéns. Ela menciona que os homens da comunidade do Tenente, onde trabalhou no armazém do seu avô, o nono Mário, durante a infância, frequentavam o terço na igreja e depois se dirigiam à bodega para jogar partidas de cartas como 37, trunfo e outros. Era uma tradição onde o encontro religioso se fundia com a descontração e a camaradagem. Alice conta que era comum que eles fossem direto da igreja para a bodega. Alguns até iam para casa almoçar, outros pediam um sanduíche e ficavam jogando até a noite no domingo.
O Padeiro e o Pão Pendurado: relações de confiança
Alice também compartilha uma história única que ressoa com a confiança e o espírito comunitário que permeavam esses lugares. No tempo do nono Mário, o padeiro deixava o pão pendurado num saco do lado de fora do armazém antes de abrir. "Ninguém mexia, alguns até pegavam o pão e depois vinham avisar para pagar", diz Alice. Essa simples ação reflete a intimidade entre os membros da comunidade e a sensação de que todos estavam interligados por laços de respeito e confiança.
O shopping center das comunidades do interior
Alice também trabalhou com os pais, Darcira e Alirio, no Armazém Castelan, na Comunidade de Vila Nova, em Santa Rosa do Sul. Ela nos leva de volta no tempo, onde o armazém era o epicentro da vida comunitária. "Ali na minha mãe era como o shopping da comunidade", diz Alice. Ao lado da escola agrotécnica, hoje Instituto Federal, o armazém atendia todas as necessidades da região. Desde comida, produtos de limpeza, até carne bovina e utilidades, o estabelecimento era o lugar onde todos encontravam o que precisavam. Tudo era muito simples, desde os lanches como o xis salada até os aperitivos de mortadela: "Cortava a mortadela em cima de um papel e servia com os palitos para pegar junto com molho farrapo.”, comenta.
As vendas fiado eram bem comuns e o registro era todo nas cadernetas de papel. Quando o pai de Alice fechou o armazém, milhares de reais ficaram para trás em dívidas até de clientes que já haviam falecidos e foram perdoados. Para anotar as doses de bebida eram feitos risquinhos no papel, onde o risco de pé era uma dose inteira e o risco deitado mencionava meia dose. Além disso, os jogos de cartas, dominó e a animada competição de bocha eram atividades sociais que uniam a comunidade. "Era feito campeonato de bocha que ficava até de madrugada. O horário durante a semana era das 7h até as 22h, mas no sábado virava à noite, quase igual aos barzinhos modernos de hoje né", compartilha Alice.
Memórias que permanecem vivas
Embora a maioria dos antigos armazéns possa ter fechado suas portas, as memórias desses locais de encontro e convívio comunitário permanecem vivas. Eles eram espaços onde histórias eram compartilhadas, onde risadas ecoavam e onde tradições eram preservadas. Cada banqueta de madeira e cada martelinho de pinga carregam consigo as emoções e os momentos que fizeram parte da vida de tantas pessoas.
A nostalgia dos antigos armazéns nos lembra da importância de preservar as memórias que moldaram nossa identidade e nossa conexão com o passado. E assim, esses locais especiais permanecem vivos em nossos corações, lembrando-nos de um tempo onde a simplicidade e a comunidade eram o cerne de nossas vidas.